personagens de animadores brasileiros

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Humberto Mauro e suas experiências animadas

   A produção O dragãozinho manso (1942) que Humberto Mauro realizou para o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi feita usando pequenos truques de manipulação de bonecos e objetos e foi considerada a primeira em "Stop-motion" no Brasil.

Humberto Mauro e a Animação Brasileira Por Léo Ribeiro
   Lendo o livro “A Experiência Brasileira No Cinema de Animação”, escrito por Antonio Moreno em 1978 e editado pela Embrafilme, na página 75 me deparei com uma surpresa! Pelo menos pra mim! “Da década de 40, temos a contribuição valiosa e mais uma vez pioneira, de Humberto Mauro. Ele inaugura, na filmografia brasileira, o filme de bonecos animados. Era Dragãozinho Manso, realizado em 1942, com fotografia e montagem de Humberto Mauro e Manoel P. Ribeiro, quando trabalhava para o ex INCE. Tinha 18 minutos e era destinado ao público infantil.” (Moreno, 1978,p.75)
   Essa informação caiu como uma bomba! Será que Humberto Mauro também é pioneiro da animação brasileira? Precisava ver esse filme! Entrei em contato com vários colegas de profissão para dividir minha descoberta e pedir mais informações sobre o assunto e tentar ver o filme. Entre eles Marcos Pimentel, Rogério Terra Jr. e José Sette, cineastas mineiros que conheci em Juiz de Fora, César Piva, gestor da Fábrica do Futuro em Cataguases, animadores da ABCA-MG (Associação Brasileira de Cinema de Animação – Regional Estado de Minas Gerais) e Marcos Magalhães, diretor do Anima Mundi e mestre da animação brasileira.
   A corrida atrás do tesouro perdido começara. Minha intenção era organizar uma exibição pública desse filme em Cataguases e usá-lo como incentivo aos jovens artistas locais no difícil caminho do audiovisual. O mapa da mina indicava o caminho do CTAv (Centro Técnico audiovisual do Ministério da Cultura), no Rio de Janeiro. Lá consegui uma cópia em DVD do filme, com um time-code impresso no centro da tela, infelizmente, imprópria para exibições públicas, mas suficiente para satisfazer minha curiosidade e de outros entusiastas, tentando jogar luz nas lacunas da história da animação brasileira.
   Humberto Duarte Mauro nasceu no dia 30 de Abril de 1897 numa fazenda, em Volta Grande, Minas Gerais, dois anos depois da primeira exibição de cinema, feita pelos irmãos Lumière na França. Filho do imigrante italiano Caetano Mauro e da mineira Tereza Duarte, mulher culta e poliglota. Quando criança se mudou para Cataguases com a Família. Foi um pioneiro do cinema e o maior diretor dos primeiros tempos do cinema nacional.
Interessado em fotografia, Mauro comprou uma câmara Kodak, em 1923, e conheceu Pedro Cornello, italiano que era o principal fotógrafo da cidade. Os dois logo descobriram um ponto em comum: a paixão pelo cinema. Juntos, compraram uma pequena filmadora Pathé-Baby de 9,5 mm. Empreendedor fundou junto com Cornello e o comerciante Homero Cortes Domingues a empresa produtora Phebo Sul America filmes e começaram a trabalhar com uma filmadora 35mm. Nessa época o cinema brasileiro estava pulverizado em várias empresas regionais, não havia uma grande companhia que centralizasse a produção de filmes. O iniciante cinema brasileiro cresceu com a proliferação dessas pequenas produtoras regionais. A Phebo cresceu e foi reorganizada, com o nome de Phebo Brasil Filmes e teve um filme, “Brasa Dormida”, distribuído pela Universal Pictures. Tornou-se um clássico que estimulou o cinema de arte no Brasil e colocou Mauro entre os melhores diretores do cinema mudo no mercado mundial. Mauro também lançou nessa época a primeira musa do cinema brasileiro, a atriz Eva Nill.
   Apesar do sucesso, a Phebo não tinha dinheiro suficiente para bancar a tecnologia sonora do novo cinema falado. Para sorte de Mauro, um colega convidou-o para dirigir na Cinédia, companhia formada no Rio de Janeiro. Seu último trabalho para essa empresa foi, “Voz do Carnaval”, a primeira incursão no cinema de Carmen Miranda. Nesse mesmo ano, o cineasta entrou para o INCE, Instituto Nacional do Cinema Educativo, criado pelo Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Capanema e dirigido pelo antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Rodou mais de 357 filmes, com temas tão variados como astronomia, agricultura, folclore e música. É nesse contexto que Mauro filmou “Dragãozinho Manso”.
   A maior parte da obra fílmica de Humberto Mauro se concentra em seu trabalho como funcionário público no INCE. Segundo Fábián Núñez, esse período não foi tão estudado pela historiografia clássica, que seguindo a sua metodologia, privilegiou os longas-metragens de ficção. Somente alguns filmes do INCE foram destacados, sobretudo pelo seu sofisticado esmero estético.
   O INCE foi criado em 12 de março de 1936. Inspirado em suas congêneres européias, como a italiana Luce (L’Unione Cinematografica Educativa) e o alemão Reischtelle für den Unterrischtsfilm (Instituto Nacional do Filme Didático), o INCE passa a ser o principal instrumento do Estado no cinema para implantar as suas propostas educativas. É relevante ressaltar que o instituto utilizava um suporte substandard, a película em 16mm, já que sua produção não era destinada às salas de exibição comerciais. Mauro montou uma equipe técnica integrada, que garantiu a vasta produção do órgão: Matheus Colaço, Bandeira Duarte, Erich Walder, Manoel Ribeiro, José Mauro e outros. Todo o processo de produção dos filmes era realizado pelo próprio instituto: revelação, montagem, gravação de som, filmagem em estúdios e copiagem. Ou seja, Roquette-Pinto buscou garantir boas condições para a produção do instituto. Embora o acervo do INCE estivesse à disposição das escolas, os seus filmes não eram voltados apenas para o uso em sala de aula como complemento ao conteúdo curricular, mas para um amplo público.
   A produção cinematográfica do INCE pode ser dividida em duas fases. A primeira é de 1936 até 1947, quando Roquette-Pinto se aposenta. “Dragãozinho Manso” foi produzido em 1942. Nesse primeiro momento do INCE, a influência de Roquette-Pinto é bem patente, conforme a utopia educativa típica da Era Vargas. Roquette-Pinto não limitava a criação artística de Humberto Mauro, mas a sua presença ideológica se faz presente nos filmes, pela escolha dos temas e pelos critérios de sua realização.
   Porém, como afirma Schvarzman, a partir do fim do Estado Novo, o INCE vai aos poucos se tornando um órgão obsoleto. E com a saída de seu fundador, o seu prestígio dentro do Ministério da Educação (que em 1951, é transformado em Ministério da Educação e Cultura), já não é mais o mesmo. Nessa fase, Humberto Mauro se torna mais livre nos temas de seus filmes, voltando-se para aspectos que caracterizam a sua obra: o universo rural. Na década de 1960, se inicia o processo de desmantelamento do órgão, que praticamente não produz mais. Em 18 de novembro de 1966, ao ser criado o Instituto Nacional de Cinema (INC), o INCE perde a sua autonomia e é absorvido pela nova autarquia federal. No ano seguinte, em 1967, aposenta-se Humberto Mauro.
   Depois de 1967 Mauro volta a viver em Minas Gerais, onde morre no dia 5 de Novembro de 1983, aos 86 anos de idade, quase que completamente cego, após uma forte pneumonia, na cidade onde nasceu e coincidentemente, na data em que se comemora o dia Nacional da Cultura, do Cinema Brasileiro e do Radioamador. Apesar de não ter feito carreira internacional, devido às limitações de sua época, foi homenageado no Festival de Cannes como um dos cineastas mais importantes do século XX.
   “Dragãozinho manso” não é considerado um filme importante dentro da carreira de Mauro, é um filme pouco visto por pesquisadores e historiadores de cinema. Com exceção de Antônio Moreno, não encontrei nenhuma linha escrita sobre o filme. O curta conta a história de Jonjoca, um dragão malvado que é derrotado por São Jorge e se torna bonzinho. Depois da conversão o dragãozinho tenta fazer amizade com outros animais e pessoas, mas seus esforços são sempre destruídos por sua aparência. Todos morrem de medo e fogem em disparada na presença de Jonjoca. Em mais uma tentativa frustrada de se incluir na sociedade, o dragãozinho é ferido e procura a ajuda de São Jorge. Em tratamento no castelo, Jonjoca conhece Maria Terezinha, sobrinha de São Jorge que se torna sua primeira amiga. Ainda machucado o Dragão salva uma criança em perigo e se torna herói. Em recompensa por seu ato de bravura, São Jorge presenteia o dragãozinho com o dom da invisibilidade, assim ele começa a voar pelo mundo fazendo boas ações, em anonimato, sempre em companhia de Maria Terezinha. Até que um dia, um mágico o transforma em príncipe. Sobe essa nova forma, se casa com Maria Terezinha e vai morar com sua amada na lua.
   A história é narrada por uma contadora de histórias, que entretêm crianças em uma roda, a estrutura do roteiro é bastante simples e linear. A cópia que assisti de “Dragãozinho Manso” é em preto e branco, no entanto segundo Ronaldo Werneck e Rony Diran, esse é o único filme colorido de Mauro na sua fase INCE, (“Carro de Bois”, de 1974, seu último filme também é em cores). Quanto a técnica utilizada na filmagem do curta, pude perceber o uso de trucagem e manipulação de bonecos, não havendo indícios de animação em stop motion. Segundo a ASIFA (Association International du Film d’Animation ou International Animated Film Association), animação é: “Criação de imagens em movimento, manipulando todas as técnicas, excluindo método de filmagem ao vivo.” Também segundo Norman McLaren a animação é, portanto, a arte de manipular os interstícios invisíveis que jazem entre os quadros.” Analisando o filme por esse ângulo não podemos afirmar que “Dragãozinho Manso” seja um filme de animação.
   Acredito que Antônio Moreno ao afirmar que o filme inaugurava na filmografia brasileira, o filme de bonecos animados, estava pensando na figura de Mauro para legitimar a animação brasileira junto ao grande público e a crítica em geral como arte digna de respeito e admiração. Essa tática também foi usada com êxito pelo Cinema Novo, que se apropriou da figura de Mauro para legitimar o movimento. Por outro lado, Humberto Mauro, como afirmam Jefferson AV e Marcos Magalhães, é citado como precursor da animação nacional pelo filme “A Velha a Fiar” de 1964, produzido no INCE, já na segunda fase do instituto. Em “A Velha a Fiar” as imagens gravadas ao vivo dividem espaço com manipulação de bonecos com fios e uma montagem ousada, onde as cenas aparecem em sincronia com a música de mesmo nome executada pelo Trio Irakitã. Ao assistir o filme pude perceber uma pequena cena onde um pau se move sozinho, acredito que essa cena foi produzida em stop motion, ou seja, animado quadro-a-quadro.
   Ainda sobre “Dragãozinho Manso”, novamente Marcos Magalhães diz: “Eu não sou tão purista em relação a isto, entendo “animação” como uma linguagem e não apenas uma técnica. Este tipo de experiência de uma certa forma abre caminho para a animação quadro-a-quadro que nos é mais familiar. Mas alguns animadores não aceitam como “animação” a manipulação de bonecos ou mesmo a técnica digital mais atual do “motion capture”. Eu creio que, mesmo estando distante do quadro-a-quadro, a filmagem do “Dragãozinho” foi uma experimentação original para o seu tempo”.
   No país até 1942, ano da produção de “Dragãozinho Manso” não temos nenhuma produção de animação com bonecos no país e as produções de desenho animado são poucas e isoladas como: “O Kaiser” em 1917, de Álvaro Marins, conhecido como Seth e “Traquinices de Chiquinho e Seu Inseparável Amigo Jagunço”, de autor desconhecido, em 1918 temos “Aventuras de Bille e Bolle”, de Eugênio Fonseca Filho. Depois de um longo hiato, em 1929/1933 temos, “Macaco Feio, Macaco Bonito”, de Luiz Seel e João Stamato e em 1938/1939 “As Aventuras de Virgulino” e Virgulino Apanha” de Luiz Sá. Só depois de uma década da produção de “Dragãozinho Manso” é que se produz o primeiro longa de animação no Brasil, “Sinfonia amazônica” de Anélio Lattini Filho. Portanto dentro dessa realidade, concordo com Marcos Magalhães que o filme de Mauro, mesmo sem animação quadro-a-quadro, possui elementos caros ao filme de animação, como o uso de bonecos, temática fantástica e produção voltada para o público infantil. Dessa maneira ele contribui para a história da animação no Brasil, como um abre alas, um intermediador entre a linguagem da animação e o filme feito ao vivo. Hoje vivemos um momento especial na produção nacional, muitos longas, curtas e séries estão sendo produzidos em todo o país e vislumbramos a tão sonhada estruturação da indústria da animação nacional. Devemos isso aos esforços de todos os realizadores que nos últimos 90 anos construíram nossa filmografia animada. Que venha à luz, ou melhor, ao escuro do cinema, “Dragãozinho Manso”.

Artigo do animador Léo Ribeiro

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